Pesquisar este blog

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Cultura do Estupro revela "machismo 2.0". Por Wilson Ferreira

Publicamos neste blogdoorro o artigo do cientista Wilson Ferreira, que procura analisar o machismo como base da cultura do estupro - uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos. 

O vídeo a seguir denuncia a exploração e exposição da mulher como objeto nas TVs de vários países. 

Que o artigo e o vídeo permitam refletir e conscientizar de que um sociedade de respeito e igualdade entre os gêneros é possível. 


blogdoorro 
--------------------///


Cultura do Estupro revela "machismo 2.0". Por Wilson Ferreira

Jornal GGN

WILSON FERREIRA

Por Wilson Ferreira*

A grande mídia escandaliza-se com o estupro coletivo de uma menina no Rio de Janeiro e clama por um país menos machista e sexista. Mas por anos deu espaço para frotas e gentilis, enquanto sua programação sempre foi patrocinada por anúncios onde a mulher-objeto-fetiche é a isca principal para produtos e serviços. A chamada cultura do estupro deve ser contextualizada no surgimento do “machismo 2.0”: uma nova forma de sexismo cujas bases estão lá na velha ordem patriarcal, mas que agora é repaginado e turbinado pelo complexo sociedade de consumo/indústria publicitária/grande mídia, capazes de criar uma nova cadeia de produção imaginária: voyeurismo-exibicionismo-sadismo. Imaginária, mas com sérias repercussões no mundo real.

O que mais chama a atenção no debate atual sobre a chamada “cultura do estupro”, principalmente com o impacto das notícias sobre o episódio do estupro coletivo ocorrido em uma comunidade no Rio de Janeiro, é que em todas as falas aponta-se unicamente para uma cultura “machista e sexista” arcaica e retrógrada que seria a responsável pelas 50 mil notificações anuais de crimes sexuais no País.

Mas são poucos aqueles que lembram de fatores mais contemporâneos: a sociedade de consumo e a cultura midiática. Aproxima-se a cultura do estupro de uma “cultura da superioridade” resultante de uma educação onde para os meninos é mostrada a sua suposta superioridade natural em relação às meninas. Porém, essa cultura machista é restrita à crítica a uma ordem patriarcal e masculina. Uma reação da cultura machista ao crescente protagonismo feminino na sociedade.

Como sempre, a grande mídia põe à mostra sua natureza esquizofrênica ao repercutir o episódio:

(a) Escandaliza-se, mas por outro lado nos últimos anos deu espaço midiático a frotas, gentilis, felicianos, a chamada bancada da bala, da Bíblia e do Boi no Congresso e toda sorte de personagens mais retrógrados, retirados do fundo da caixa de Pandora para afrontar, desestabilizar e finalmente derrubar o governo Dilma;

(b) Tem sua grade de programação diária patrocinada por filmes publicitários que promovem produtos e serviços onde a mulher é exposta como isca, objeto sexual ou colocada em plots onde é apresentada como naturalmente submissa ao poder físico ou financeiro masculino. O telejornal mostra âncoras e entrevistados indignados para pouco tempo depois mostrar o anúncio do “vai verão, vem verão” de uma conhecida marca de cerveja com uma mulher segurando uma bandeja em trajes sumários.

Produção imaginária

Acredito que é a partir dessa natureza esquizoide da grande mídia que a questão da cultura do estupro deve ser discutida. Mais precisamente, a partir da ordem sociedade de consumo/indústria publicitária/grande mídia. Uma ordem mais poderosa e que se sobrepôs à ordem patriarcal, a origem de todo o machismo, por assim dizer, tradicional que estaria por trás do revoltante episódio do estupro coletivo. 

Esse machismo da velha ordem patriarcal deu lugar a um, digamos, machismo 2.0, dessa vez repaginado e turbinado pela sociedade de consumo e indústria publicitária para ser veiculado pela grande mídia.

Estupro não é uma questão de prazer ou tesão, mas de poder: poder de dominar o corpo do outro (sadismo), para mostrá-lo como uma conquista em vídeos ou fotos em redes sociais (exibicionismo) para o prazer anônimo de onanistas (voyeurismo).

Essa cadeia de produção imaginária é análoga a da promoção do consumo, mudando apenas a ordem dos elementos da cadeia:  pessoas que veem imagens distantes do objeto do desejo nos anúncios (voyeurismo) sonhando possuí-los e ostentá-los (exibicionismo) como moeda social para se impor sobre o outro (sadismo).   

Freud explica?

Esse machismo 2.0 se fundamenta nas mesmas origens da ordem patriarcal, em torno do chamada matriz fálica descrita pela psicanálise freudiana – o primeiro simbolismo introjetado pela criança, o simbolismo universal de poder sobre o qual o papel sexual masculino será estruturado. O Falo como a “premissa universal do pênis”, a louca crença infantil que não existe diferença entre os sexos, todos têm um pênis. Existe apenas um órgão genital, e tal órgão é masculino.

Essa fantasia de origem narcísica primária é diluída com a descoberta do outro: algumas crianças não têm pênis o que para o homem corresponderá à fantasia da “perda do pênis” ou aquilo que Freud descreveu como “complexo de castração”, o ponto frágil da afirmação sexual masculina.

Esta imagem da perda permanecerá para sempre associada ao psiquismo masculino de forma traumática e o medo da castração continuará perseguindo a realização sexual como um fantasma. No adulto, o medo da castração não se manifestará dessa forma tão literal: a castração se manifestará no medo da impotência (seja sexual, financeira ou social). Por isso, o homem estará condenado a ter que provar continuamente que jamais será castrado, será empurrado para situações onde terá de, continuamente, provar a masculinidade e a potência fálica: no desempenho sexual atlético, nos ganhos financeiros, na habilidade em manipular símbolos de status e prestígio, etc.

Esta ansiedade vai marcar negativamente a qualidade das relações com o sexo oposto. A forma de o homem perceber a mulher será prejudicada ao ver nela nada mais do que um campo de provas da potência fálica. A ansiedade da comprovação fálica empurrará o psiquismo masculino a procurar não a mulher, mas mulheres, num sentido genérico e abstrato. O investimento afetivo toma‑se difícil e transitório.

A simples presença da mulher torna‑se uma ameaça à segurança fálica masculina. Ela significa, per si, a cobrança de uma tomada de posição ou a castração em potencial: a possibilidade do fracasso. Por isso ela deve ser dominada, neutralizada. O corpo feminino deve ser reduzido a fragmentos, a objetos, para ser melhor dominado. É o surgimento do fetichismo sexual. O corpo real feminino é neutralizado pelo fascínio por fragmentos: pés, olhos, cabelos, ou acessórios associados a alguma destas partes como sapatos, luvas, etc.  

Machismo 2.0 e a cultura do estupro

O que era fragilidade e ansiedade originada no medo da castração, com o complexo sociedade de consumo/publicidade/mídia tudo isso é amplificado com o pânico da castração.  

A presença constante da mulher como objeto promotor de mercadorias de luxo ou de marcas corresponde ao desafio da potência masculina: “quer uma mulher como essa? Pois então compre um carro como esse. Prove que jamais será castrado!”. Para Freud a ansiedade da castração jamais é resolvida no psiquismo masculino, tornando-se uma inesgotável ferramenta de promoção de consumo de bens com alto valor agregado.

A cada anúncio de cerveja com mulheres que servem aos homens com uma bandeja, a cada filme com uma mulher fascinada olhando para um carro dirigido por um homem vitorioso e a cada feira ou exposição com atraentes modelos se oferecendo como isca ou miragem, a mulher torna-se na atualidade num suporte/meio/condutor da promessa de realização da potencia fálica.

Se na antiga ordem patriarcal, a mulher sempre foi uma ameaça que tinha de ser neutralizada como um objeto (seja como dona de casa sem direitos, seja como prostituta reduzida à condição de objeto-fetiche), hoje com a ordem globalizada de consumo a mulher foi promovida a uma moeda genérica de troca.


*WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA

Mestre em Comunicação Contemporânea pela Univ. Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Proc. Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Univ. Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comun. Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.



Nenhum comentário:

Postar um comentário