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segunda-feira, 7 de março de 2016

Brasil, de golpe a golpe


22.02.2016
 
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A Proclamação da República apresentou as características clássicas dos golpes de Estado: a ilegalidade e a ruptura da ordem constitucional - A história republicana está a sugerir uma categoria de golpe operado dentro da ordem institucional-legal vigente.

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A história republicana está a sugerir uma categoria de golpe operado dentro da ordem institucional-legal vigente.

As definições correntes dizem-nos que os golpes de Estado se caracterizam pela surpresa, pela violência militar ou civil e pela ilegalidade.


Roberto Amaral*

No Pravda em português 


Ilegalidade, evidentemente, em face da ordem legal que fraturam, pois, na sequência, o golpe de Estado vitorioso (e só esse conta) impõe sua própria legalidade.


A Proclamação da República apresentou as características clássicas dos golpes de Estado: a ilegalidade e a ruptura da ordem constitucional. 


Malogrado, o golpe de Estado é condenado como crime político; vitorioso, transforma-se em fonte de poder e de direito, autoritário ou não. 



Nossa história é farta em exemplos de golpes de Estado, desde o Primeiro Reinado, mas nem todos podem ser classificados como ilegais, exatamente por terem sido operados dentro da 'ordem' e, portanto, sem violência e sem determinarem rupturas constitucionais.


Assim, por exemplo, a insubordinação das tropas que 1831 levou o primeiro Pedro à abdicação do trono, e, mais tarde o 'Golpe da maioridade' (assim foi registrado pela História) que levaria seu filho ao trono em 1840, aos 15 anos incompletos.


O fato histórico Proclamação da República, porém, apresenta as características clássicas dos golpes de Estado, a saber, a ilegalidade (o levante das forças armadas contra seu chefe supremo e o regime que juraram defender) e a ruptura da ordem constitucional, com a queda do Império. 


A rigor, a implantação da República tem no golpe de 1889 apenas o seu parto, pois o novo regime só se consolidaria, ainda criança, com o golpe, de explícita ilegalidade, do marechal Floriano Peixoto (1891), investindo-se na presidência após a renúncia de Deodoro, contra o ditado da Constituição republicana recém aprovada.


Nesta República de muitos golpes e contragolpes dois golpes clássicos merecem destaque, a saber, um, que rasgando a Constituição de 1934 instituiu a ditadura do 'Estado Novo' (1937), e aquele outro que em 1º de abril de 1964 instaurou a ditadura militar, decaída em 1984.


A característica comum de todos eles, é a ruptura da ordem constitucional, nos dois últimos casos mediante a violência, compreendendo alteração institucional e instauração de regimes de exceção caracterizados pela repressão policial-militar, a revogação dos direitos individuais e das garantias constitucionais, a supressão das liberdades - especificamente das liberdades de imprensa, de reunião e de associação - e a revogação dos mecanismos da democracia representativa ('Estado Novo') ou sua vigência custodiada pelo novo regime (1964-1984).


Mas a história republicana está a sugerir uma categoria de golpe de Estado que, alterando a composição do Poder, a função e o objeto de todo e qualquer golpe ou insurreição ou revolução, se opera dentro da ordem institucional-legal vigente.


Lembro, a propósito, dois episódios recentes de nossa história, o 11 de novembro de 1955 e a instituição, em 1961, do parlamentarismo.


 Ambos formalmente legais e ambos curatelados pelos militares e ambos operados pelo Congresso Nacional. 


O primeiro decorreu de reação de setores militares legalistas, comandados pelo ministro da Guerra, o general Henrique Lott, à manobra comandada pelo presidente da República e seus ministros da Aeronáutica, da Marinha e da Casa Militar, visando a impedir a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleitos presidente e vice-presidente da República.


Diante da reação do Exército, o Congresso decretou numa assentada o impedimento do presidente em exercício (Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados) e, seguindo a ordem da sucessão constitucional, empossou Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, no cargo.


O fato foi apresentado como 'contragolpe legalista' e, assim, festejado. 


Em outras palavras, o Congresso, atendendo à voz majoritária das Forças Armadas, e no rigor de sua competência constitucional, dava um golpe de Estado (o impedimento dos presidentes), para impedir, eis sua justificativa em busca de legitimação, o golpe de Estado que visava a fraturar a Constituição, impedindo a posse dos eleitos.


De forma similar, tivemos o golpe parlamentarista de 1961, já referido, quando o Congresso Nacional, diante da sublevação militar que intentava impedir a posse do vice João Goulart (episódio decorrente da renúncia de Jânio Quadros), revogou o presidencialismo e aprovou a implantação pro tempore do parlamentarismo.


Nas duas situações agiu o Congresso Nacional nos termos de sua competência constitucional.

E, lamentavelmente, parece que fizemos escola.


Similarmente o Congresso paraguaio, em 2012, revogou, mediante impeachment, o mandato do presidente Fernando Lugo e o Judiciário hondurenho decretou, em 2009, a deposição e prisão do presidente José Manuel Zelaya.


Se o golpe de Estado, em regra, é promovido contra um governante, em 1937, no Brasil, foi a arma de que lançou mão o próprio governante, para fazer-se ditador, donde não ter havido mudança de mando nem de controle do poder.


O golpe clássico - com a deposição do governante- é substituído pela mudança de governo, mantido o governante.


O golpe, faz-se por dentro, manipulado pela burocracia estatal associada a segmentos da classe dominante. 


É quando o golpe também pode operar-se de forma lenta e continuada, sem ruptura institucional mas determinando alterações na ordem constitucional.


Neste caso, o que caracterizaria o golpe de Estado (ou essa espécie de golpe por dentro do sistema) seria a alteração de poder sem violência e dentro da ordem legal, ou seja, utilizando-se da própria ordem legal para fazer as alterações requeridas pelo novo projeto de poder.


Permanece a definição de golpe de Estado porque sua efetividade determina uma nova coalizão de poder, ao arrepio da soberania popular.


É um golpe de Estado que não pode ser acoimado de ilegal.


Essas reflexões tentam compreender a crise constituinte brasileira de hoje ao identificar a operação de um 'golpe' dentro do Estado, comandado internamente por uma burocracia estatal, autônoma em face da soberania popular e dos instrumentos da democracia representativa.


Essa burocracia governativa opera em condomínio com forças poderosas do capital concentrado, cujo objetivo é, na contramão do pronunciamento eleitoral de 2014, restaurar o controle neoliberal sobre a economia e o Estado.


O cerco do Estado em função dessa política sem voto mas representativa do poder econômico revela seus primeiros movimentos ainda em 2014, quando, perdidas as eleições, decide o grande capital a tomada do governo, impondo-lhe a política rejeitada eleitoralmente.


Nesse sentido, operou e opera de forma desabusada a imprensa monopolizada, ecoando o que lhe dita a direita.


Seu primeiro fruto foi o ajuste fiscal, mas a ele não se limitou, impondo todo o receituário neoliberal: privatizações, precarização das relações de trabalho, independência do Banco Central, política de juros altos, as medidas recessivas que constroem o desemprego e, com audácia jamais vista, a fragilização da Petrobrás, para que se torne irrelevante e possibilite que o Pré-Sal, maior reserva de hidrocarbonetos descoberta no planeta nos últimos 30 anos, seja capturado pelas grandes petroleiras privadas mundiais.


Para tanto chegou-se ao requinte: a empresa, atacada por escândalos e pela crise internacional do petróleo, é desmoralizada, a queda de suas ações em bolsa é atingida pela especulação e pela campanha de descrédito da grande imprensa, e nesse quadro anuncia-se a redução dos investimentos e para a venda de ativos na bacia das almas.


A agenda do governo é ditada pelos adversários do governo, e dentro dele estamentos burocráticos autarquizados - setores do Ministério Público, setores do Judiciário, setores da Polícia Federal - associados à grande imprensa - operam no sentido da desestabilização do governo.


Juiz de estranha jurisdição nacional preside como se delegado fôsse inquérito que lhe caberia sanear e julgar com isenção; procuradores, promotores e juízes, até mesmo ministros de tribunais superiores, antecipam juízos sobre pessoas que estão sendo ou serão por eles julgadas, a prisão preventiva é transformada em instrumento policial que visa a obter delações premiadas.


A imprensa, irresponsável em sentido pleno, transforma o acusado em condenado sem sursis e o submete à execração pública irreparável. 


O Congresso, comandado política e ideologicamente por uma oposição numericamente minoritária, opera o desmonte das conquistas sociais das últimas décadas.


O governo, nascido das bases populares da sociedade, opta pelo acordo de cúpula com os Partidos, tornando-se prisioneiro de uma base parlamentar infiel, desleal e extremamente cara.


Necessitado do apoio social, faz concessões às forças conservadoras; afasta-se das massas sem demover a direita de seu projeto golpista.


Quem não se inspira na história está condenado a repeti-la, repetindo seus erros.


O livro A serpente sem casca ( da 'crise' à Frente Popular) pode ser adquirido através do site da editora Contraponto clicando aqui.


*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia


Leia mais em: www.ramaral.org

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