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sábado, 28 de março de 2015

A meritocracia na raiz do conservadorismo da nossa classe média


Do Pravda em português. 


A meritocracia na raiz do conservadorismo da nossa classe média. 21879.jpeg





Por que a classe média é reacionária?

O texto é longo, porém delicioso, para ser lido de uma só tacada, até perder o fôlego.

 O mais provável, caso seja nosso visitante assíduo, é que você não se enquadre nesta análise sobre o conservadorismo da classe média brasileira. Mas, certamente, irá lembrar de muitos familiares que costumam azedar os almoços de domingo e de certos amigos ou conhecidos que enchem o saco na mesa de um bar.

O enigma da classe média brasileira

Por Renato Santos de Souza *

A primeira vez que ouvi Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente.

Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível.


    Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base.

    A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.


    Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão.

    Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu "O QUE" estava acontecendo, mas não nos ofereceu o "PORQUE".

    Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o "atraso de vida" do Brasil, como sempre foi dito? Mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social.

    Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana.

    E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.

    Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa.

    A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava "por que" a classe média, e "por que" a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.

    Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica - justamente uma categoria profissional com vocação para classe média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta.

    Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta!

    Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso?

    Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais.

    Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de "corporativismo". Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma.

    Então deveria haver outra interpretação para isto.

    Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil.

    Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país.

    É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui.

    Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia.

    A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora.

    Assim, boa parte da classe média pensa da seguinte forma:

    . é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito;

    . é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo;

    . quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito;

    . reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos.

    . é contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos.

    Tudo uma questão de mérito.

    Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras?

    Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas.

    O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar.

    O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada.

    Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática.

    Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios.

    Isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média.

    Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo.

    Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas.

    E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática.

    Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte.

    Se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época.

    Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.

    As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas.

    A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa.

    Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.

    Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição.

    E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida.

    Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas.

    A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço.

    Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais.

    Aliás, todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.

    Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?

    Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas.

    Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social.

    Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.

    Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social.

    1- A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.

    2- A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos.

    3- A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas.

    Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.

    4- A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável "ética do merecimento", uma perversa "ética do desempenho".

    Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.

    Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem.
    Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. 
    Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado.

    O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso).

    Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mundo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.

    Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.

    Desta forma, no mundo da meritocracia - que mais deveria se chamar "desempenhocracia" - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.

    5- A meritocracia escamoteia as reais operações de poder.

    Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário.

    Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico.

    Bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, "promovendo" as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante.

    Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos "bons" desempenhos.

    Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que, por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política.

    Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.

    Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta "objetividade" dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política.

    Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.

    6- A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos "racionais", e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade).

    A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.

    7- A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados.

    Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho e fazer uma literatura calibrada para vender.

    Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.

    Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.

    A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas.

    Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.

    8- Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho.

    O verso "cada um de nós é um universo" do Raul Seixas - pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação.

    A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante.

    Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano.

    Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.

    Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existem, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos.

    Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo.

    Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo.

    Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia.

    Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.

    Renato Santos de Souza é engenheiro agrônomo, mestre em Economia, doutor em Administração e professor da Universidade Federal de Santa Maria - RS. 


    Enviado por Paulo Maurício Machado 

    Número de filhos de beneficiários do Bolsa Família tem diminuído

    Mais uma mentira É DESMASCARADA...

    28 de Março de 2015 - 10h51 

    Número de filhos de beneficiários do Bolsa Família tem diminuído


    Em dez anos, o número médio de filhos nas famílias mais pobres do país caiu mais do que a média brasileira, o que prova que as mães do programa Bolsa Família não têm mais filhos para ganhar um benefício maior. 


    Foto-montagem
    Ao contrário do que dizem, número de filhos de beneficiários do Bolsa Família tem diminuído

    Ao contrário do que dizem, número de filhos de beneficiários do Bolsa Família tem diminuído

    Entre 2003 e 2013, enquanto o número de filhos até 14 anos caía 10,7% no Brasil, as famílias 20% mais pobres do país – faixa da população que coincide com o público beneficiário do programa de complementação de renda – registravam uma queda mais intensa: 15,7%. Para as mães das famílias 20% mais pobres do Nordeste, a queda foi ainda maior, alcançando 26,4% no período analisado.

    Os números de filhos até 14 anos por mulher, colhidos nas sucessivas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, mostram que não passa de preconceito a visão de que as mães beneficiárias do Bolsa Família procuram ter mais filhos para receber mais dinheiro do governo. O pagamento por filho até 15 anos de idade é de R$ 35 mensais. O valor pode chegar até R$ 77, no caso das famílias extremamente pobres, sem nenhuma renda.

    “Atribuem aos mais pobres um comportamento oportunista em relação à maternidade, como se essas mães fossem capazes de ter mais filhos em troca de dinheiro. Isso é puro preconceito”, analisa a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. “Quem diz isso não pensa quanto custa ter um filho. É óbvio que este valor não paga o leite da criança e as despesas que virão depois. Além disso, o preconceito parte do princípio de que o que move as pessoas para a maternidade ou a paternidade é apenas uma motivação financeira”. 

    Os motivos da queda da fecundidade vêm sendo analisados no Brasil. Entre eles, estão o maior acesso à informação sobre os métodos contraceptivos e sobre a sexualidade, o aumento da escolaridade da mulher jovem, a ampliação da urbanização e com ela o acesso aos serviços médicos. “As mães do Bolsa Família têm de levar os filhos a cada seis meses para o acompanhamento nos postos de saúde, o que ajuda a ampliar o acesso à informação e aos contraceptivos”, lembra a ministra.

    Em números absolutos, a pesquisa mostra que, em 2013, as mães brasileiras tinham, em média, 1,6 filho até 14 anos. Entre aquelas 20% mais pobres do Nordeste, a média foi de 2 filhos. Nas famílias 5% mais pobres do Nordeste, com perfil de extremamente pobres, a média foi de 2,1 filhos.

    “Com esses dados, me pergunto por que algumas pessoas mantêm o preconceito de que pobres têm muitos filhos. As pessoas que estigmatizam os pobres têm um comportamento semelhante ao racismo ou estão desinformadas”, avalia Tereza Campello.

    Mitos

    Segundo a ministra, o mito de que o Bolsa Família estimula o aumento do número de filhos não se sustenta ao longo dos 11 anos do programa de complementação de renda. “Esse é um dos grandes mitos que envolvem o Bolsa Família”, lembra.

    Outra crença é que o benefício estimula a preguiça e que o beneficiário não trabalha. As pesquisas mostram que os adultos beneficiários participam tanto do mercado de trabalho quanto os adultos que não são beneficiários. Três em cada quatro adultos do Bolsa Família trabalham.

    Além disso, pesquisa recente do Instituto Data Popular aponta que 7 em cada 10 beneficiários do Bolsa Família que moram em favelas trabalham. “É preciso deixar claro que o benefício médio pago às famílias é de R$ 170 mensais. Esse valor serve para complementar e não substituir a renda do trabalho”, destaca Tereza Campello.

    Além de dar mais autonomia às mulheres na decisão da maternidade, o Bolsa Família teve outros impactos positivos, como a diminuição de partos prematuros e queda da mortalidade de menores de cinco anos. Os resultados foram atingidos graças ao acompanhamento pré-natal para gestantes e ao acompanhamento dos filhos nos postos de saúde. Essas são contrapartidas obrigatórias dos beneficiários.

    Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social

    sexta-feira, 27 de março de 2015

    Por que "depoimentos" prestados em delegacia não podem ser usados em juízo?

    LIMITE PENAL


    Por que "depoimentos" prestados em delegacia não podem ser usados em juízo?


    Por  e 

    Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa [Spacca]







    É cada vez mais comum a utilização das expressões “declaração na fase inquisitória” e “declaração na fase judicial”. O adjetivo é muito mais do que o lugar em que as “declarações” são prestadas. Significa o modo e a finalidade com que são produzidas. Isto porque a partir da notícia de possível crime, o Estado precisa realizar a apuração preliminar com o fim de levantar elementos mínimos de materialidade e indícios de autoria. Do contrário, corre-se o risco de se iniciar a ação penal sem elementos mínimos. A função da investigação preliminar é a de levantar elementos de materialidade e autoria da conduta criminosa (meios probatórios, informantes, testemunhas, perícias, documentos, etc.), justificando democraticamente a instauração de ação penal (CPP, artigo 12), ou seja, para que o jogo processual possa ser iniciado a partir da autorização do estado-juiz (recebimento motivado da denúncia e/ou queixa crime).

    Para instauração de ação penal é necessária a existência de justa causa (elementos de materialidade e autoria) a ser aferida por investigação e/ou documentos preliminares. De regra, realiza-se por Inquérito Policial (CPP, artigo 4º e seguintes), o qual é procedimento administrativo, não jurisdicional, a cargo da Polícia Judiciária — Estadual ou Federal (artigo 144, parágrafo 4º, CF), submetido aos princípios da administração pública (legalidade, publicidade, impessoalidade, moralidade e eficiência — CF, artigo 37)[1]. Evita-se que a ação penal possa ser instaurada como aventura processual, dado que o simples fato de ser acusado já etiqueta[2] o sujeito para todo o sempre, mesmo que absolvido ao final. De sorte que é necessário o controle, por parte do Judiciário, dos requisitos para o exercício da ação penal.

    Dai que durante a fase anterior à ação penal executam-se “atos de investigação”, desprovidos da garantia de Jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, dentre outros. Os depoimentos das vítimas e das testemunhas, embora sigam as regras do CPP, no que couber, são tomados pela autoridade policial sem a presença do Ministério Público e da Defesa. A destinação dos “atos de investigação” é a de servir de sustentáculo para o recebimento da ação penal. Nem mais, nem menos. São declarações produzidas sem contraditório. Logo, não podem ser qualificadas como “atos de prova”.

    Dito de outra forma, em relação à validade dos elementos colhidos no Inquérito Policial, diante de suas peculiaridades (sem garantia da Jurisdição, do Contraditório, da Ampla Defesa, da Motivação dos Atos), cabe distinção: a) em relação às provas periciais o contraditório será diferido, a saber, no decorrer da instrução processual os jogadores poderão impugnar os laudos, pareceres, perícias, inclusive requerendo esclarecimentos e sua renovação; b) no tocante aos depoimentos testemunhais a renovação é obrigatória. Cuida-se de mero ato de investigação, sem que o indiciado tenha participado da produção das informações, nem mesmo controlada pelo Estado Juiz.

    A validade, portanto, é somente para análise da justa causa e cautelares pré-jogo, como explica Aury Lopes Jr: “O inquérito policial somente pode gerar o que anteriormente classificamos como atos de investigação e essa limitação de eficácia está justificada pela forma mediante a qual são praticados, em uma estrutura tipicamente inquisitiva, representada pelo segredo, a forma escrita e a ausência ou excessiva limitação do contraditório. Destarte, por não observar os incisos LIII, LIV, LV e LVI do art. 5o e o inciso IX do art. 93, da nossa Constituição, bem como o art. 8o da CADH, o inquérito policial jamais poderá gerar elementos de convicção valoráveis na sentença para justificar uma condenação.”[3]

    Fazendo um paralelo com a Sindicância e o Processo Administrativo Disciplinar, não resta muita dúvida que as declarações tomadas de maneira inquisitorial, durante a apuração preliminar, não servem de elemento probatório posterior, conforme reiterada jurisprudência (STF MS 22.791 e STJ MS 7.983). Devem ser renovadas, sob o crivo do contraditório.

    Assim, como passe de mágica, em uma leitura obtusa do art. 155 do CPP, não se pode requentar os depoimentos prestados à autoridade policial porque violam o contraditório na produção da prova, com o qual já defendemos uma noção de amor ao contraditório (aqui). É o mesmo que tornar irrelevante a Jurisdição, ou seja, se os depoimentos antes valem, qual o sentido de se renovarem em juízo? Justamente porque antes não havia acusação formalizada e a acusação e defesa não podem sequer perguntar. A partir do processo como procedimento em contraditório (Fazzalari), as declarações realizadas durante a investigação preliminar para fins de condenação são um nada probatório. E esta variável deve ser considerada, pois há julgadores que acolhem.

    Simples assim e muitos não param para sequer pensar, no desejo de condenar, prenhe de deslizamentos imaginários decorrentes da assunção da concepção de Verdade Real, tão bem criticada por Salah Khaled Jr (aqui), sem falar na violação do devido processo legal substancial (aqui).

    Provavelmente uma das maiores conquistas do processo penal democrático seja a garantia de ser ‘julgado com base na prova’, ou seja, com base nos elementos produzidos em juízo, a luz do contraditório e demais garantias constitucionais processuais. Prova é o que se produz em juízo. O que se faz no inquérito são meros atos de investigação cuja função endoprocedimental os limita a servir como base para as decisões interlocutórias da investigação (prisões cautelares, quebra de sigilo bancário, interceptações telefônicas etc.) e para a decisão de recebimento ou rejeição da denúncia. Não mais do que isso, como regra (claro que a exceção são as provas técnicas irrepetíveis e aquelas produzidas antecipadamente através do respectivo incidente judicial). Os atos do inquérito não se destinam a forma a convicção do julgador sobre o caso penal, mas apenas indicar o fumus commissi delicti para a formação da opinio delicti do acusador e a decisão de recebimento/rejeição.

    É por isso que há mais de uma década sustentamos a “exclusão física dos autos do inquérito”[4], como a única forma de assegurar a ‘originalidade’ dos julgamentos, ou seja, de que alguém será julgado  com base na prova judicialmente produzida e em contraditório pleno. Também é o único mecanismo eficiente para evitar os falaciosos julgados do estilo: “cotejando a prova judicializada com os elementos do inquérito”, ou “a prova judicializada é corroborada pela prova produzida no inquérito”. Sempre que um juiz usa a fórmula mágica do ‘cotejando’ ou do ‘corrobora’, o que ele está dizendo é: não tenho prova judicializada com suficiência para condenar, mas como o quero fazer, preciso recorrer aos elementos produzidos na inquisitorialidade do inquérito.

    Dessarte, tecnicamente os elementos do inquérito não são ‘provas’ e, portanto, não servem para legitimar uma condenação. Ademais, posteriormente em juízo, essa “prova” (rectius atos de investigação) não serão ‘repetidos’, senão ‘produzidos’. É um equivoco falar em ‘repetição’ se compreendermos que a prova é originariamente produzida no processo e em contraditório. O que se fez na fase pré-processual, não é prova. O contrário é desamor ao contraditório e condenações com a insígnia do autoritarismo que tocaia o processo penal brasileiro, ainda.


    [1] STF, ED.Caut. MS 25.617-6/DF, rel. Min. Celso de Mello: “... a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais: (...) O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.”


    [2] BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
    [3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
    [4] Desde nossa primeira obra “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicada em 2001. Atualmente o tema é tratado nos livros “Investigação Preliminar” e “Direito Processual Penal”, ambos publicados pela Editora Saraiva

     é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

     é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

    Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2015, 8h01

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