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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Dialeto caipira: Um repositório da erudição do século XVI

10/2/2013 às 2h38
Dialeto caipira: Um repositório da erudição do século XVI


DIÁRIO DA MANHÃ

BRÁULIO ANTONIO CALVOSO SILVA

A cultura caipira é o resultado de uma mistura, basicamente entre os europeus de origem portuguesa e os índios brasileiros, sendo enriquecida também pelos africanos. A partir dos anos 1900 é que o nome caipira começou a ser mais utilizado, para designar aquele que trabalha no campo - do Tupi: caa = mato e pir = cortar; portanto caipira é originalmente aquele que corta o mato. Porém, segundo Leon Clerot, a palavra pir ou pi significa “pele”. Sendo assim, a palavra “caipira” teria a seguinte composição etimológica: caa: mato + pir = pele. Nesse caso, a tradução mais plausível seria “pele de mato”, sendo o seu significado: “aquele que tem a pele coberta pelo mato” ou “aquele que tem mato até na própria pele”. Clerot cita em sua monumental outras palavras que teriam o “pi” em sua composição, como significando “pele”. Piqui, por exemplo, seria a junção de pi = pele + qui = espinhosa, áspera. Daí também veio a palavra “caipora” - caa: mato + porá: morador.

A palavra pir não era pronunciada sozinha, mas sempre se aglutinava a uma vogal, para facilitar a pronúncia da palavra pir, que, por um fenômeno chamado de eufonia, transforma-se em pira ou pora. Tem até uma música cuja letra diz: “sou caipira, pira, pora, Nossa Senhora de Aparecida...”. Provavelmente a letra faz um jogo de palavras com os vocábulos que significam cortador ou morador do mato, para defender a dignidade da condição do morador da zona rural ou a dignidade caipira.

Cultura caipira é a soma de conhecimentos milenares de índios em contato com os portugueses e também com os negros. Do ponto de vista linguístico, a forma caipira de se falar o português é chamada de dialeto caipira. Esse dialeto ainda é preservado em locais como a zona rural de Formosa, e esse tema já foi objeto de pesquisas linguísticas da UnB e de outras universidades.

Quando os portugueses chegaram aqui, trouxeram livros, como os de Camões, e com essa linguagem os mais graduados conversavam, e, tendo ela como ferramenta, o “Rey” escrevia, ou mandava o seu escrivão fazê-lo.

Uma carta escrita pelo então governador Tomé de Sousa ao Rei D. João III em Portugal, da Cidade do Salvador, em 18 de julho de 1551, mostra um pouco dessa origem linguística: “Senhor. Nas deradeyras que o anno pasado escrevy a V. A. dezia que Pêro de Guoees capitão moor do mar desta costa e o provedor moor e o olvidor gerall lerão idos desta cidade...”.

Note que as palavras “deradeyro” e “dezia” ainda existem no dialeto caipira, pois eles, os chamados caipiras, são, na verdade, herdeiros de uma linguagem erudita ou, como diríamos nos meios acadêmicos, “falantes da norma culta”. Com o passar do tempo essas palavras fundiram-se com palavras do Tupi e de outras línguas indígenas, como o Guarani, e suas derivações. Porém, como algumas pessoas (os caipiras) ficaram afastadas dos centros urbanos por um período de tempo muito grande, conservaram em seu dialeto não somente um léxico (conjunto de palavras) específico, mas também uma velocidade peculiar de fala, sem pressa, com a paciência e o ritmo da natureza. Essa velocidade de fala é uma herança indígena. A pronúncia do “L” com a língua tocando o céu da boca, notadamente no final de algumas palavras como formal, cabedal, mal ou racial, é herança dos portugueses.

Já o fato de alguns caipiras terem herdado o vocábulo “muié”, é pelo seguinte motivo: no século XVIII de cada três brasileiros, somente um falava completamente o português. Os outros dois falavam uma mistura de línguas, chamada de nheengatu, Koiné, língua geral ou língua boa. Como o nheengatú tem raízes na língua tupi (ou tupi-guarani), e nessa língua não existe os fonemas “L” e nem “V”, então a maneira mais fácil de pronunciar a palavra “mulher” é transformando o som do “lh” em som de “i”. Como o som do “r” final também tinha uma certa dificuldade para ser pronunciado pelos falantes da língua geral, então virou um acento na última sílaba: “muié”.

Dificuldades de pronunciar alguns fonemas não ocorrem apenas aqui. Os japoneses têm dificuldade em pronunciar certos sons ou “fonemas”, que não existem na língua deles. Brasil, por exemplo, vira “Bu-ra-dji-ru”. Trata-se de um fenômeno de adaptação fonética, que é universal.

Portanto, prestemos atenção à nossa maneira de observar a modalidade de falar do dialeto caipira, para não cairmos no preconceito linguístico quando ouvirmos alguém falar, pois somos nós é que muitas vezes não conhecemos a história da formação da língua portuguesa falada no Brasil.

A música caipira é outro patrimônio cultural resultante dessa mistura linguística. As violas de dez cordas foram trazidas das várias regiões de Portugal, e eram usadas em missões religiosas. Da mistura do português e do tupi veio o dialeto caipira, e dos instrumentos e tradições trazidos pelos portugueses, somados à velocidade de fala do índio, foi se estabelecendo uma forma bem específica de contar histórias e impressões através da música. Dessa forma a música chega a ser a síntese de um complexo conjunto de saberes, de heranças da língua, da velocidade da fala, dos instrumentos que foram trazidos pelos portugueses, assim como pelas mensagens, narradas pelas letras. Alguns ritmos como o cateretê (catira), com batidas marcadas pelas palmas e pelas pisadas de pé, também são fruto dessa fusão entre brancos e índios, visto que essa coreografia não tem nenhum registro nas tradições portuguesas, mas tem em danças indígenas.

A contribuição dos tropeiros é uma forma à parte de elaboração musical, que servia inclusive para levar as notícias de um local a outro, muitas vezes produzidas em locais de pouso. Outra herança cultural dos tropeiros para o Brasil é a culinária. Quem nunca comeu um feijão tropeiro?

A instituição chamada de Memorial Serra da Mesa, localizada em Uruaçu, promove, várias vezes ao ano, encontros de representantes de culturas populares, que atualizam seus modos de fazer festa, de se comunicar, de transmitir os seus saberes, as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos e até artefatos, que lhes dão a oportunidade de se sentir participantes de um grupo, de uma comunidade. O Memorial Serra da Mesa pode ser chamado de “lugar cultural”, pois é o espaço onde as culturas populares realizam e atualizam os seus costumes tradicionais, e onde há a celebração de seus valores, seu compromisso com o bem-estar do outro, seu sentimento de pertencimento à terra e o Cerrado, especificamente.

Sendo por meio da língua e do vocabulário que ela conserva, pelas manifestações musicais, pela culinária, e por inúmeras manifestações folclóricas, temos que conhecer melhor essa riqueza da cultura caipira, que ainda é pouco explorada nos meios acadêmicos. Afinal de contas, não é possível gostar e nem preservar o patrimônio cultural imaterial, se não o conhecemos?

Clerot, Leon F.R. Glossário etimológico dos termos geográficos, geológicos, botânicos, zoológicos e folclóricos de origem Tupi/Guarani, incorporados ao idioma nacional – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, Conselho editorial 2010;

(Bráulio Antonio Calvoso Silva, professor de literatura portuguesa e língua japonesa, membro colaborador da Universidade do Cerrado e escritor. E-mail: brauliocalvoso@hotmail.com)

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